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Pesquisador e professor municipal fala sobre os 223 anos da Revolta dos Búzios

Há exatos 223 anos, em 12 de agosto de 1798, Salvador foi palco de um dos mais importantes movimentos pela liberdade e igualdade: a Revolta dos Búzios. Inspirados pelos ideais da Revolução Francesa, que de 1789 a 1799 promoveu intensas mudanças políticas e sociais naquele país europeu, diversos segmentos da sociedade baiana passaram a discutir e adotar uma postura crítica à monarquia portuguesa.

“Inicialmente era um movimento plural, que envolvia homens brancos da mais alta hierarquia, senhores de engenho, grandes e pequenos comerciantes, militares e homens pardos livres”, explica o professor de História, Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento, que atua na Escola Municipal Professor Manoel de Almeida Cruz, em Cajazeiras XI. “Além disso, era um movimento amplo que estava presente também no Recôncavo Baiano”, frisa.

Pesquisador da história da Revolta, Sacramento se dedicou ao tema nos estudos do mestrado na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), dos quais resultou a dissertação “De Pardo Infame a Herói Negro: o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento”. As pesquisas continuam atualmente no doutorado na Universidade Federal da Bahia (Ufba). A Revolta dos Búzios faz parte dos conteúdos pedagógicos da Rede Municipal, nos cadernos Nossa Rede.

De acordo com o professor, o movimento tratava de diferentes agendas, como aspectos políticos, como a crítica ferrenha à monarquia e à igreja, econômicos, como a liberdade de comércio, e sociais, como o aumento do soldo dos soldados e a quebra dos critérios de hierarquia de cor dentro do ambiente militar. Agregou-se a essa agenda a liberdade dos escravizados, o fim da discriminação e a promoção social dos grupos sem privilégios.

Havia, então, um forte fervilhar de ideias revolucionárias em uma Salvador que não tinha mais de 60 mil habitantes, a maioria de escravizados, com alta carestia, que convivia com as notícias de investidas implacáveis contra os quilombos (então, espaços bastante fortalecidos de resistência), que absorvia os ideais da Revolução Francesa e, porque não, da Revolução Negra na Ilha de São Domingos.

“A força da Revolta dos Búzios, que teve como principais lideranças quatro homens pardos (filhos de pais brancos com mulheres negras), assustou, provocou medo nas classes dominantes da época, que responderam com extrema violência”, conta o professor. “Em documentos históricos encontramos indicações de que o movimento já englobava escravizados urbanos e possivelmente de engenhos. Era uma mobilização de grande pluralidade e amplitude”.

Marco – O estopim da revolta foi no dia 12 de agosto de 1798, “quando onze boletins manuscritos foram encontrados colados em importantes prédios do centro histórico da Cidade da Bahia, revelando em seu conteúdo as reivindicações do movimento e conclamando o “Povo Bahinense” para o tempo feliz da liberdade, igualdade e fraternidade”, contextualiza Sacramento. A resposta foi a autorização de uma devassa comandada pelo ouvidor geral do crime, o desembargador Manuel de Magalhães Pinto Avellar de Barbedo, para “caçar” os possíveis autores.

Quatro dias depois começaram as prisões e mesmo assim, boletins continuaram a aparecer, ocasionando no dia 23 de agosto, a prisão do soldado Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, 36 anos. Enquanto o poder instituído reforçava as buscas, os participantes ativos da revolta traçavam novos rumos para o movimento, bem como estratégias para libertar Luís Gonzaga.

Os planos não deram certo. Dezenas de pessoas foram presas e no total, 33 destas ficaram encarceradas até o final do processo, entre elas o alfaiate João de Deus do Nascimento, o soldado Lucas Dantas do Amorim Torres e o aprendiz de alfaiate Manoel Faustino dos Santos Lira, aos 27, 24 e 22 anos, respectivamente.

O professor relata que todos foram julgados, com sentenças que variavam da absolvição, meses de prisão até o degredo. Mas para Luís Gonzaga, João de Deus, Lucas Dantas e Manoel Faustino sonhar e lutar pela liberdade e pela igualdade custou a vida. Depois de cerca de um ano presos, foram enforcados e esquartejados na Praça da Piedade, em 8 de novembro de 1799. Foram julgados infames até a terceira geração e tiveram os bens sequestrados e leiloados. Os restos mortais ficaram expostos em diferentes áreas da cidade. Só foram retirados a pedido das autoridades sanitárias e enterrados em local desconhecido até hoje.

Reconhecimento – De acordo com Flávio Sacramento, a revolta foi relatada de forma pejorativa até o final do século XIX, quando começou a receber o devido reconhecimento histórico. Nos anos de 1917, 1920 e 1922 os fatos passam a ser tratados com exaltação.

“Em 1979, a atuação do Grupo Teatral Palmares Inarõn promoveu a leitura dramática do texto “Documentos Negros: Revoltas dos Búzios”, na implantação do MNU na Bahia, representando um marco inicial da apropriação desse evento histórico pela militância negra. Assim, o título “Conspiração dos Búzios” foi ressignificado para “Revolta dos Búzios”, associando os “búzios de Angola” de 1798 à luta enxergada com a participação de elementos de matriz africana”, relata do professor, que destaca ainda o fortalecimento do tema através dos grupos Ilê Aiyê e Olodum. Por fim, em 2011, os quatro mártires da Revolta dos Búzios foram reconhecidos oficialmente como Heróis da Pátria, através da Lei 12.391.

Sacramento destaca a importância de estudar esse movimento, tanto pela relevância histórica, como pelos aspectos que a tornam atual. “Lembrar o movimento rebelde baiano de 1798 é deixar viva a memória dos negros que morreram, ousando fazer política na Bahia, sonhando com a liberdade e igualdade. A Revolta dos Búzios será sempre uma arma poderosa para lutarmos contra aqueles que ainda destilam seus venenos racistas contra o povo negro. A nossa libertação está na educação, na conscientização e valorização do ser negro e do protagonismo negro na história como um poderoso antídoto contra o racismo”, diz o professor.

E encerra: “O que queremos é um lugar digno, em todos os espaços e sentidos, aos negros que morreram por nós e aos que sobrevivem, vivem e resistem. Como lembrou Clóvis Moura há mais de 30 anos, essa “é uma bandeira a ser empunhada enquanto o Brasil não se livrar do sistema de exploração e de discriminação racial que perdura até os nossos dias”, bandeira que jamais podemos deixar de erguê-la, ainda mais nos nossos dias, inacreditavelmente, cada vez mais sombrios”.

Curiosidade – A Revolta dos Búzios teve vários nomes: Conjuração Baiana, Revolta dos Alfaiates, Inconfidência Baiana, Conspiração Republicana da Bahia e Conjuração de João de Deus, entre outros.

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